Pequenos (grandes) problemas
De um lado, o número cada vez maior de crimes praticados por jovens. Do outro, cientistas em busca de explicações para tal comportamento. Entenda os porquês dessa briga
De um lado, o número cada vez maior de crimes praticados por jovens. Do outro, cientistas em busca de explicações para tal comportamento. Entenda os porquês dessa briga
Anna
Gosline
É tarde da noite. Você caminha de volta para casa,
sozinho, e passa por uma praça pouco iluminada. Um arrepio percorre seu corpo
quando você os vê. Adolescentes. Eles falam alto, lembrando como afanaram a
bolsa de uma senhora naquela manhã, em pleno horário de aula. Essas crianças...
De seguranças de shoppings centers que não tiram os
olhos de grupos de jovens à cobertura da mídia sobre o último tiroteio ou
esfaqueamento envolvendo adolescentes, há uma preocupação crescente em todo o
mundo a respeito da criminalidade e do comportamento anti-social entre os
jovens. Políticos e formadores de opinião discutem fervorosamente sobre as
possíveis causas do fenômeno: pais separados, álcool, TV, videogames ou apenas
uma sociedade decadente. O fato é que ninguém parece saber o que fazer a
respeito.
Uma nova geração de cientistas está jogando luzes
sobre o debate. Auxiliados por avanços nas técnicas de imageamento cerebral e
na genética molecular, eles estão começando a entender o que há de errado
quando as crianças não dão certo. Melhor: a ciência começa a descobrir novos
métodos para cortar o crime juvenil pela raiz.
A preocupação causada pelo mau comportamento do
adolescente não é novidade. No livro "Psychosocial Disorders in Young
People: Time Trends and Their Causes" ("Doenças Psicossociais em
Jovens: Tendências do Tempo e Suas Causas"), de 1995, o psiquiatra
infantil Michael Rutter e o criminologista David Smith documentaram um aumento
crescente em crimes juvenis em todo o planeta logo após a Segunda Guerra
Mundial, com uma taxa cinco vezes maior entre 1950 e 1990 nos países
desenvolvidos.
O problema é que o mundo em 2008 é outro,
principalmente para os mais jovens. Interpretar as tendências criminosas
recentes é uma missão difícil graças às mudanças nos tipos de crime registrados
e às fontes de informação conflitantes. O fato de a maioria dos crimes não ser
comunicada às autoridades também não ajuda. De acordo com dados oficiais, a
criminalidade caiu entre 1992 e 1999 no Reino Unido. Mas houve crescimento
expressivo na faixa etária entre 14 e 17 anos, em ambos os sexos.
Idades do crime
Não há como negar que o crime é uma opção para
muitos adolescentes. Estatísticas oficiais dos governos americano e britânico
sugerem que o auge da atividade criminal entre os garotos acontece entre 17 e
18 anos. Para as meninas, a pior fase ocorre entre 14 e 15 anos. Mas, de acordo
com a pesquisadora Terie Moffit, do Instituto de Psiquiatria de Londres, esses
números contam apenas metade da história. Ela argumenta que eles ocultam dois
tipos distintos de delito.
O mais comum é o crime insignificante, incentivado
pela sedução glamourosa das más companhias. Esses delinqüentes tendem a
abandonar tal comportamento perto dos vinte anos. O outro grupo, mais
problemático, é o que começa a mostrar um comportamento anti-social no jardim
da infância. Essas crianças, diz Moffit, têm predisposições biológicas para
problemas comportamentais. Se inseridas em um ambiente difícil - sem educação
adequada ou sofrendo com as agruras da pobreza ou do abuso -, elas terão alto
risco de se tornarem criminosos violentos por toda a vida. Grande parte do
trabalho de Moffit vem sendo realizado com o "bando de Dunedin". Ele
é formado por 535 homens e 502 mulheres, todos nascidos em 1972 e 1973 e
inscritos logo que nasceram no Estudo de Saúde e Desenvolvimento
Multidisciplinar da Universidade de Otago, em Dunedin, Nova Zelândia.
Cruzando as informações do grupo neozelandês com
outros estudos, Moffit descobriu que garotos e garotas que se tornaram
criminosos por "toda a vida" tinham propensão a algum tipo de defeito
neurológico desenvolvido muito cedo, até os três anos de idade. Essas crianças
tendiam a ter um QI baixo, habilidades de linguagem pobres e, especialmente, o
diagnóstico de déficit de atenção e hiperatividade. Esses problemas são mais
comuns em meninos do que em meninas, como no crime adolescente em geral. Isso
tudo também ocorre em casos de transtorno de conduta, distúrbio caracterizado
pela violência, crueldade com pessoas e animais e uma tendência a quebrar
regras. É claro que há quem pegue mais pesado no grupo mais "leve" de
Dunedin. Aos 26 anos de idade, muitos deles ainda cometiam delitos, além de
terem maior probabilidade de usar drogas ou sofrer de distúrbios mentais. Mesmo
assim, os delinqüentes mais precoces, que correspondem a 10% do grupo masculino
de Dunedin, representam o maior problema. Aos mesmos 26 anos, eles acumularam
quase metade das acusações mais sérias entre todos os pesquisados.
O que há de tão diferente nas crianças que se
tornam más logo cedo? "Muitos de seus traços cognitivos e emocionais têm
um forte fator genético", diz Moffit. Realmente, décadas de estudos sobre
gêmeos e adoção mostraram que o comportamento anti-social e criminoso tende a
enraizar-se em determinadas famílias. Em estudo publicado em 2005, Moffit concluiu
que a genética é responsável por quase 50% do comportamento anti-social entre
jovens.
Um déficit cognitivo que leva à predisposição a
participação em crimes violentos também pode ser adquirido logo no começo da
vida graças a desnutrição, complicações no parto ou peso baixo no nascimento.
Anomalias físicas menores, como línguas fissuradas ou orelhas mal formadas -
que podem estar relacionadas a um desenvolvimento neural deficiente - também
podem ser um sinal do que virá no futuro.
Começo difícil
Por sorte, a biologia não está relacionada ao
destino. Em 1994, a equipe de Patricia Brennan, da Universidade Emory, em
Atlanta (EUA), estudou a interação entre complicações no nascimento e
maternidade em um grupo de homens dinamarqueses. Os pesquisadores descobriram
que, enquanto partos complicados aumentavam o risco de um comportamento
criminoso mais tarde, a rejeição materna no começo da vida intensificava a
probabilidade de participação em um crime violento por volta dos 18 anos.
"Só a biologia não é suficiente para explicar tal comportamento. É preciso
associá-la a outro fator, como um ambiente social deficiente ou maus
pais", diz Brennan.
Alguns pesquisadores começam a desvendar como
certos genes e o ambiente social provocam mudanças cerebrais capazes de influenciar
o controle emocional e a violência em crianças. Um dos avanços mais
interessantes surgiu em 2002, quando o grupo de Moffit se concentrou no gene da
enzima monoamina oxidase A (MAO-A). Variantes dessa enzima têm sido
relacionadas a agressões cometidas contra animais e humanos: ela é capaz de
quebrar neurotransmissores, incluindo a serotonina, uma das chaves para o
controle da agressão. Os pesquisadores estudaram a interação entre a enzima,
criminalidade e abuso infantil, um fator de risco decisivo na construção de um
comportamento anti-social na idade adulta.
Usando amostras de sangue dos homens do grupo de
Dunedin, a equipe de Moffit dividiu-os em dois conjuntos: um com alta e outro
com baixa atividade da enzima. Eles também foram separados de acordo com a
incidência de maus-tratos durante a infância: 8% dos garotos haviam sido
severamente maltratados quando crianças e 28% sofreram algum tipo de abuso
durante a infância.
A pesquisa descobriu que as variantes da enzima não
são capazes de indicar, sozinhas, comportamentos criminosos na idade adulta.
Mas algo impressionou os cientistas a respeito dos resultados relativos aos
garotos com baixa atividade da enzima e histórico de abuso na infância. Eles
tinham três vezes mais chances de enfrentar algum distúrbio do comportamento na
adolescência. Mais: o grupo era dez vezes mais propenso a sofrer condenações
por crimes violentos no futuro.
Cara de ódio
O que essa constatação explica? Trocando em miúdos,
a combinação de abusos na infância e baixa atividade da enzima MAO-A parece
intensificar a reatividade emocional das crianças. Em 2002, testes realizados
com meninos e meninas de 9 anos pelo psicólogo Seth Pollk, da Universidade de
Madison (EUA), mostraram que os maltratados no passado eram bem mais rápidos ao
captar raiva e hostilidade facial quando comparados a crianças que não passaram
por abusos. Enquanto a percepção de uma ameaça pode ajudar os primeiros na
adaptação a uma vida cheia de perigo e privação, seus níveis de reatividade e
violência impulsiva podem chegar às alturas.
Outro estudo, coordenado em 2006 por Andreas
Meyer-Lindbergh, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA), usou
imagens de ressonâncias magnéticas cerebrais para mostrar que pessoas saudáveis
com baixa atividade da enzima MAO-A tinham amígdalas mais ativas. Essa área do
cérebro processa nossas emoções, como o medo e a reação de lutar ou fugir. Para
descobrir o que se passava na cabeça de seus voluntários, Meyer-Lindbergh
apresentou a eles fotos de rostos com raiva ou medo e pediu a todos que
acessassem suas próprias lembranças negativas. Ahmad Hariri, um dos cientistas
que participaram do estudo de 2006, alerta que ainda há muito a descobrir.
"Não somos capazes de medir a reatividade da amígdala de alguém e depois prever
se essa pessoa vai socar outro indivíduo quando for contrariada", diz.
Além disso, os pesquisadores ainda tentam entender
outro grupo de crianças. Elas também apresentam um comportamento anti-social
precoce, mas não demonstram nenhum tipo de reação emocional. Quando submetidas
a testes, atingem altos índices de insensibilidade emocional, componente
fundamental para o diagnóstico de psicopatia adulta. Além disso, elas sofrem
com a falta de empatia e de culpa e pontuam mais nos quesitos busca de perigo,
falta de medo e narcisismo. Elas têm QI normal e são geralmente insensíveis a
castigos, mas muito receptivas a recompensas.
"Defeitos emocionais repousam no centro de
suas tendências anti-sociais", diz James Blair, especialista em psicopatia
do Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA). Sem entender essas pistas
ameaçadoras, como a falta de medo, as crianças sofrem maior risco de passar por
situações perigosas. Sem compreender a dor dos outros, muitas não conseguem
evitar a crueldade. "Durante a socialização, é crucial aprender que
algumas atitudes podem provocar medo ou tristeza em outras pessoas. Só assim
aprendemos a evitá-las", diz Blair. Ele também afirma que essa mecânica de
aprendizado parece defeituosa em psicopatas. "Se eles querem algo e dar um
soco na cara de alguém parece ser o caminho para conseguir, acabam adotando tal
comportamento", diz.
"Esse tipo de violência é típica de crianças
com insensibilidade emocional", diz Paul Frick, pesquisador da
Universidade de Nova Orleans (EUA). Ele estima que cerca de 30% das crianças
com comportamento anti-social precoce mostram traços de insensibilidade
emocional. Frick também descobriu que elas têm mais chances de se tornarem
violentas na idade adulta. Mais uma vez a amígdala e mais algumas áreas do
cérebro podem ser as culpadas. Dessa vez, entretanto, o problema é oposto.
Imagens cerebrais de psicopatas adultos revelam baixa atividade na amígdala e
em áreas do córtex pré-frontal em situações amedrontadoras e quando suas
memórias emocionais são ativadas. O fato é que já sabemos que a genética exerce
papel ainda maior em crianças com insensibilidade emocional. Essi Viding, do
Instituto de Psiquiatria de Londres, realizou um estudo com gêmeos britânicos
de 7 anos em 2005. De acordo com os seus resultados, 67% das variações de
insensibilidade emocional podem ser explicados geneticamente.
James Blair vai além. De acordo com ele, traços de
insensibilidade emocional não possuem causas sociais conhecidas e têm uma
conexão frágil com má educação e até mesmo maus-tratos. Claro que o ambiente
familiar e social influem na formação de um indivíduo. Situações de pobreza,
por exemplo, oferecem mais motivos para a prática criminosa. "A psicopatia
é um problema emocional, ela não empurra ninguém para fazer algo, a menos que haja
uma recompensa óbvia", diz Blair.
Entender se uma criança é superemocional ou
insensível ajuda os psicólogos no diagnóstico precoce. Assim é possível aplicar
tratamentos específicos antes que elas se envolvam em atos criminosos. "Há
20 anos, só poderíamos indicar terapias e aconselhamento. Depois, era preciso
esperar alguns meses para ver se havia melhoras", diz Stephen Scott, do
Instituto de Psiquiatria de Londres.
A melhora na educação entre quatro paredes é uma
das principais ferramentas da nova abordagem dada ao comportamento anti-social.
Em crianças com predisposição genética ou fatores de risco sociais, a boa
educação vinda dos pais pode fazer toda a diferença. Em 2001, Stephen Scott
realizou um curso de três meses com pais que ensinava a importância do incentivo
ao bom comportamento, aliado a punições serenas e consistentes. Os pais
reportaram uma redução significativa nos problemas de conduta. Melhor: os
benefícios continuaram, mesmo um ano após o fim do curso.
Castigos ineficazes
A estratégia tende a ser um pouco diferente para
crianças com insensibilidade emocional. Em 2005, David Hawes e Mark Dadds, da
Universidade de Nova Gales (Austrália), testaram um programa familiar
semelhante ao de Scott com garotos de 4 a 8 anos, alguns dos quais com traços de
insensibilidade emocional. Os castigos se mostraram ineficazes para os últimos,
mas usar incentivos como recompensa funcionou muito melhor.
Não importa qual o método, a mensagem clara de
todos os pesquisadores é uma só: quanto mais cedo, melhor. Programas para
adolescentes alcançam certo sucesso, mas manipular o comportamento de crianças
com menos de 8 anos é claramente mais eficaz.
Algumas das estratégias mais bem-sucedidas começam
antes mesmo de a criança nascer. Em estudo divulgado em 1998, David Olds, da
Universidade do Colorado (EUA), reportou o acompanhamento de 315 crianças
nascidas entre 1978 e 1980 ao longo de 15 anos. Suas mães receberam a visita
mensal de uma enfermeira desde a gravidez até a criança completar dois anos. O
foco do trabalho era o cuidado positivo, a boa nutrição e o desenvolvimento
pessoal da mãe. Os resultados foram drásticos entre os filhos das mais pobres e
solteiras: aos 15 anos, eles contabilizaram apenas metade do número de
detenções e um quinto do número de condenações da média entre a mesma
população. Os jovens também bebiam e fumavam menos e tinham menos parceiros
sexuais do que aqueles que vinham de famílias que não passaram pelo programa.
Esse tipo de intervenção não é barata, mas seus
resultados são inquestionáveis. O último relatório sobre os neozelandeses do
grupo de Dunedin mostrou que, aos 32 anos, os homens do grupo de crimes
persistentes tinham dez vezes mais probabilidade de serem fumantes, 22 vezes
mais chances de serem consumidores de drogas e 19 vezes mais risco de serem
hospitalizados por doenças mentais do que o grupo de baixa atividade criminal.
Eles também eram mais propensos a doenças cardíacas e derrames. Além disso,
homens e mulheres do grupo de maior risco criminal tinham mais propabilidade de
maltratarem seus parceiros. Já as mulheres eram especialmente mais propensas a
baterem em seus filhos, com tudo para colocá-los no mesmo caminho no futuro.
Resta saber se a ciência será capaz de quebrar este círculo vicioso. Não custa
lembrar: todas as nossas crianças valem o esforço.
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